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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Flamengo sub-17: muito inhame e fubá!

Torcida do Flamengo durante o jogo nas Laranjeiras
Por Marcos Alvito

"Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie"

Walter Benjamin

"Quando me perguntam o que eu dei pro meu filho pra ele ter um chute forte assim eu respondo: inhame e fubá". É o que me diz a mãe do Leco, lateral-direito do time sub-17 do Flamengo. Seu filho estava prestes a entrar em campo para enfrentar o Fluminense na final do primeiro turno [Taça Guanabara, campeonato carioca 2012].Veja os gols da partida no vídeo abaixo.

Ela me aponta o garoto, baixinho e magro, fazendo aquecimento com um colete vermelho na outra extremidade do campo. Nem dá para acreditar que ele tenha um canhão na perna-direita. A mãe garante que desde pequeno ele chutava muito forte. É uma senhora negra bem baixinha, um pouco rotunda e muito educada. Pelo menos até a bola rolar.

  

Quando isso acontece se transforma. Xinga todo mundo e com vontade: juiz, bandeirinha e o time adversário inteirinho.

Há muito tempo não via uma arquibancada tão negra. E nunca vi tantas famílias em um jogo de futebol: pai e mãe, filhos, primos e até amigos que vieram dar uma força. Hoje não há nenhuma torcida organizada, nenhum instrumento musical, ninguém solta fogos. Mas a vibração é poderosa. Mais do que apoiar o Flamengo, estão torcendo pelos seus filhos, possíveis jogadores de futebol profissional, o bilhete premiado para tirar aquelas famílias da pobreza. Só que esse bilhete é tão difícil de sair quanto o da loteria.

Leco foi criado em Macaé, a três horas de distância do Rio. O garoto hoje mora no Rio em um bairro cujo nome a mãe não conseguiu lembrar. Quando dá, quando os compromissos futebolísticos permitem, visita a família durante o fim de semana. Depois daquele jogo Leco iria viajar para um torneio no Espírito Santo com o time do Flamengo.

Os times entram em campo. Ou melhor: primeiro entra o time do Flamengo, com os jogadores de mãos dadas, logo se dirigindo ao setor da arquibancada onde estamos. Aliás, o setor reservado aos visitantes é uma aula sobre civilização e barbárie. Aquele estádio aristocrático foi construído para abrigar a primeira grande competição de futebol realizada no Brasil, o sul-americano de 1919, que conquistamos com um gol do mulato Friedenreich. Do lado de lá, a civilização: as arquibancadas de madeira pintada, a tribuna de honra, os símbolos do clube. E as pessoas sentadas à sombra. É dali que entra o time do Fluminense, cercado de crianças empunhando balões verdes e vermelhos.

Do lado de cá, a arquibancada de cimento e pintura desbotada, debaixo de uma laje carcomida pela ferrugem. E, é lógico, debaixo de um sol escaldante durante todo o jogo. Sem falar no cheiro nauseabundo dos dois banheiros químicos colocados à nossa disposição. Há um cordão de isolamento delimitando o pequeno setor reservado para os "visitantes" e policiais nos controlando. A mãe de Leco não entende o porquê da separação: "Na Gávea as torcidas ficaram misturadas e tinha banheiro pra todo mundo".

Finalmente começa o jogo. Vistos de perto aqueles "garotos" de 16 anos são galalaus enormes, tirando um ou outro, como o Leco, por exemplo. Ou o camisa 9, um lourinho de físico pouco imponente mas que o senhor ao meu lado me garante já ter marcado 22 gols no campeonato. A proximidade permite apreciar melhor a técnica e a velocidade surpreendentes. O jogo é disputado em um ritmo inacreditável para o calor que estava fazendo nesta tarde de "inverno" no Rio de Janeiro. O meu Flamengo começa melhor, talvez animado pelo fato de que sua pequena torcida faz muito mais barulho do que a torcida do lado de lá. Deve ser a energia solar.

Numa jogada banal de meio de campo, alguém faz uma falta em um jogador do Flamengo. É de bem longe, talvez uns 15 metros depois da linha central. Leco se apresenta para cobrar. Até ali tivera uma atuação discreta no jogo, sem comprometer mas também sem mostrar grande coisa. Uma ou duas vezes tinha aparecido pela direita para uma infiltração na defesa adversária mas não havia sido lançado. O goleiro do Fluminense, vestido de azul, é um grandalhão que deve ter quase dois metros. Pelo sim, pelo não, ele coloca uma barreira com vários homens. O chute de Leco sai firme, com muita direção, queimando a grama. A bola entra no canto esquerdo do gigante. É só agora, quando o lado de cá da arquibancada está pulando alucinado que a mãe de Leco levanta a cabeça. Ela simplesmente não consegue ver os lances mais importantes do filho. É emoção demais pra coração de mãe. Vira-se pra mim sorrindo: "Meu filho é guerreiro, meu filho é guerreiro".

A comemoração é uma coisa linda, mais bonita que a Capela Sistina ou a Praia de Ipanema. Do que a Praia de Ipanema não. De qualquer forma é muito bonito ver o time inteiro em um bolo feito de gente em cima do coitado do Leco. Assim não há inhame com fubá que aguente. Não teve dancinha nem coreografia individual, apenas aquela celebração coletiva de uma equipe unida. Bom sinal.

Com o gol e o apoio da torcida, o Flamengo continua no ataque, aproveitando talvez o nervosismo do time do Fluminense. Nova falta, desta vez bem mais perto. Leco fica perto da bola, bem como o camisa 7. Ele já havia chamado a minha atenção: um negro alto, parrudo, não tinha pinta de ponta-direita e não era. Apesar do número na camisa, claramente jogava no meio de campo e mais, era canhoto. Na hora da cobrança, a surpresa: não é Leco quem bate e sim o camisa 7, chamado Jajá. Desta vez a bola foi batida mais no jeito do que na força, de curva, no ângulo direito do goleirão do Fluminense. Como se diz na gíria do futebol: "saco". Flamengo dois a zero. A nossa arquibancada, que já estava bem quente, ferveu. Do lado de lá, sombra e silêncio.

O Fluminense parte para o ataque com tudo e o Flamengo aproveita. Ou quase isso. Numa jogada rápida de contra-ataque o número 6, efetivamente um lateral-esquerdo, avança livre pelo meio e diante da saída do gigante azul titubeia dois segundos e acaba perdendo o gol. Isto dá ânimo ao Fluminense, que continua pressionando. Um jogador é derrubado na área e pronto, pênalti para os tricolores. Quem cobra é um zagueiro branco, cabelos cortados bem curtos, alto e de porte atlético. Bate com uma frieza e uma categoria impressionantes: goleiro de um lado, bola do outro. Parece uma execução a sangue-frio. A coisa começa a complicar pro nosso lado.

No intervalo, sobressalto do lado de cá. Em plena luz do dia, e bota luz nisso, acontece uma revoada de morcegos. Assusta bastante, mas a torcida não arreda pé da arquibancada. De qualquer forma era um mau agouro para o segundo tempo. O começo do segundo tempo é o inverso do primeiro: o Flu no ataque e nós nos defendendo. Para desespero da nossa torcida, em que muita gente passa a tentar orientar o time: "não recua tanto, avança, avança". Perto de nós um amigo da família grita "Leco, Leco", decerto para passar-lhe alguma instrução. Esse homem já comentara em voz alta que havia um corredor pela direita pro Leco explorar. De qualquer forma, Leco se concentra no jogo e não vira o rosto para olhar.

No outro extremo do campo, bem distante de onde estávamos, um jogador do Flamengo fica caído. A mãe do Leco entra em desespero. Só se acalma quando mostro a ela que o seu filho estava por ali, de pé, apenas observando o companheiro contundido. O Flamengo faz várias substituições e a garotada que entra corre mais do que coelhinho de desenho animado, como diria Nelson Rodrigues. Percebe-se que sabem que é a sua vida que está em jogo. Imagino por trás de cada um daqueles garotos uma família cheia de esperanças. Os reservas então, têm que aproveitar cada chance. Cada pique, cada corrida, cada chute parecem ser movidos por doses iguais de sonho e desespero.

Desespero e revolta é o que sentimos bem no finalzinho do jogo. O centro-avante do Fluminense é lançado bem no meio da defesa do Flamengo e consegue tocar na bola um segundo, se tanto, antes do nosso goleiro. A bola vai para fora. O goleiro não consegue mudar a sua trajetória e atinge o jogador do Fluminense. Na minha opinião, como vocês podem adivinhar totalmente imparcial, não foi pênalti. O juiz pensa diferente e aponta o dedinho para a marca de cal em meio a impropérios de todas as naturezas a ele dirigidos por nossos torcedores, sem falar nas ameaças de morte, democraticamente compartilhadas também com o bandeirinha mais próximo. Mas quem nos executa com a frieza habitual é o alvo zagueiro do tricolor.

O time do Fluminense, de forma totalmente inesperada, corre para a nossa direção, para o lado da torcida do Fla. O zagueiro-artilheiro branquelo faz gestos inequivocamente obscenos e com as mãos fica brandindo as partes pudendas em nossa homenagem. Seus colegas agem de forma igualmente vergonhosa e revoltante. Extremamente revelador de como se comporta a civilização quando corre o risco de perder para a barbárie. Mas ali quem era o bárbaro? Sua majestade, o juiz, dá apenas um cartãozinho amarelo para um atleta do Fluminense, quando o time todo merecia ser expulso. Diga-se de passagem que a torcida do Flamengo, até ali, afora os xingamentos de praxe ao juiz e aos seus auxiliares, tinha-se limitado a apoiar a sua equipe, não tendo dirigido nenhum tipo de canto ou provocação à equipe contrária.

Um jogo de tal quilate dramático é a exemplificação perfeita da frase de Nelson Rodrigues acerca da complexidade shakesperiana da mais reles pelada. Sendo assim é adequado que tenha sido decidido em cobrança de pênaltis. Foi aquele drama ritual: todos na linha central, garotos do Fla abraçados, garotos do Flu abraçados também, com o agravante de um atleta tricolor, provavelmente evangélico, devidamente ajoelhado. O Fluminense começa e abre logo vantagem. O Flamengo perde o primeiro pênalti. Até a quarta cobrança o Flu manteve a vantagem, até que um jogador seu cobra ao melhor estilo Roberto Baggio: pelo menos dois metros acima do travessão. O Flamengo empata e este empate é mantido até a quinta cobrança. Começam então as cobranças individuais. Como era de se esperar, chega a hora de Leco bater. Sua mãe enfia o rosto no colo e parece rezar. Leco corre, não chuta muito forte desta vez, o gigantão se estica todo, toca na bola... e ela entra. "Obrigado, Senhor", diz mamãe com mais alívio do que alegria. O goleiro do Fla resolve desequilibrar e pega um pênalti, deixando literalmente a bola na marca do pênalti para o Flamengo ser campeão. E é ele mesmo que bate, deixando o gigante azul batido.

Os garotos do Flamengo correm pro lado certo pra comemorar com seus familiares e amigos, arrancam as camisas tão pesadas, agitam-nas feito bandeiras, sobem enlouquecidos pelo alambrado que nos separa, felizes como se estivessem jogando uma pelada de verdade, sem obrigações. A mãe de Leco pula abraçada à filha menor, que por não ter chute forte está no balé. A alegria é ampla, geral e irrestrita. Ao menos do lado de cá. Pra fechar com chave de ouro, agora só faltava mesmo era uma revoada de urubus...


Marcos Alvito (@marcosalvito) é professor da Universidade Federal Fluminense. Nasceu e vive no Rio de Janeiro e é torcedor do Flamengo há várias décadas, tendo visto Doval, Andrade, Adílio e Zico, entre outros.

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